O Deus do deus da guitarra
Geralmente quando assisto aos chamados “pastores eletrônicos” ou mesmo em conversas informais sobre os bastidores de muitas igrejas, fico surpreso com a arrogância dos evangélicos.
Por um lado, ao invés da humildade ensinada por Cristo, cada vez mais é ensinado um “evangelho” onde o (in)fiel cobra, ordena e determina toda sorte de prosperidade (financeira e na área da saúde) para sua vida.
Por outro lado, a arrogância se expressa em um ar de superioridade, como se o cristão estivesse acima de tudo e todos, sempre estivesse certo a respeito de qualquer assunto e, graças à sua perfeição e fidelidade, possa julgar os erros (e até os acertos) de qualquer pessoa.
Talvez esse seja o motivo pelo qual fiquei surpreso pelo ato de humildade de um grande astro mundial da música, que revelou sua história e sua intimidade em um livro autobiográfico, publicado em 2007.
Você pode até não gostar de rock e blues, mas é difícil não considerar Eric Clapton um grande músico. Sua técnica e virtuose criaram um estilo pessoal e levaram uma geração a considerá-lo o “deus da guitarra”. Depois de passar por grupos que marcaram a história do rock, como o Yardbirds e Cream, Clapton seguiu carreira solo, sempre no convívio com astros como George Harrison, Paul McCartney, Phil Collins, mesmo antes da fama de cada um deles.
Eu sou fã de biografias. Quando sinceras, revelam as pessoas como elas são, com suas qualidades e defeitos. Eric Clapton revela sem meias-palavras sua triste história familiar, seus relacionamentos instáveis e o quanto sua carreira foi pontuada pelo envolvimento com drogas e pelo alcoolismo.
É interessante que, logo depois da leitura da história de Clapton, li a de Tim Maia, escrita por Nelson Motta. E percebi o quanto a trajetória dos dois é semelhante em alguns aspectos, porém com finais completamente diferentes.
Depois de uma primeira temporada de internação para tratamento contra a dependência química na clínica Hazelden, em 1982, Clapton gravou um novo trabalho – Money and Cigarettes – e fez uma turnê para promover o álbum. Foi o primeiro passo para uma recaída.
Na seqüência, gravou uma série de músicas que não foram aceitas pela gravadora, participou da trilha do filme O Traidor e saiu em turnê em uma parceria com Roger Waters. Só em 1985 consegue emplacar um novo álbum, Behind the Sun, que também leva para a estrada, junto com o álcool e as drogas.
Em agosto de 1986, nasce Conor, segundo filho de Clapton, agora com uma modelo italiana. Embora o relacionamento seja um tanto distante, a existência de Conor gradualmente leva o músico a voltar a si e perceber a necessidade de mudar seu estilo de vida. Para isso, em novembro de 1987, retorna para a clínica Hazelden.
Quando já estava no final do tratamento, Clapton percebeu que durante que permaneceu ali, apenas desempenhou um papel que aparentava uma mudança, mas internamente sentia-se o mesmo. Foi nesse momento que ele sofreu uma transformação radical em sua vida, após um sentimento de profundo desespero, como relata:
Naquele momento, quase que por si mesmas, minhas pernas cederam, e caí de joelhos. Na privacidade de meu quarto, implorei por socorro. Eu não atinava com quem estava falando, sabia apenas que havia chegado ao meu limite, não me restava mais nada para lutar. Então lembrei do que tinha ouvido falar sobre rendição, algo que pensei que jamais conseguiria fazer, que meu orgulho simplesmente não permitira, mas entendi que sozinho eu não teria sucesso, por isso pedi socorro e, caindo de joelhos, me rendi.
Em poucos dias percebi que havia acontecido alguma coisa comigo. Um ateísta provavelmente diria que foi apenas uma mudança de atitude, e em certa medida é verdade, mas foi muito mais que isso. Encontrei um lugar a que recorrer, um lugar que sempre soube que estava ali, mas em que nunca realmente quis ou precisei acreditar. Daquele dia até hoje, jamais deixei de rezar de manhã, de joelhos, pedindo ajuda, e à noite para expressar gratidão por minha vida e, acima de tudo, por minha sobriedade. Prefiro me ajoelhar porque sinto que preciso ser humilde quando rezo e, com meu ego, isso é o máximo que posso fazer.
“Se você está perguntado por que faço tudo isso, vou dizer... porque funciona, simples assim. (...) Não tenho problema com religião e cresci com uma forte curiosidade sobre modelos espirituais, mas minha busca afastou-me da igreja e da veneração em grupo rumo a uma jornada interior. Antes de minha recuperação ter início, encontrei meu Deus na música e nas artes, com escritores como Herman Hesse, e músicos como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Little Walter. De algum jeito, de alguma forma, meu Deus sempre esteve ali, mas agora eu havia aprendido a falar com ele.”
Quando li estas palavras, pensei em duas coisas. Primeiro, a necessidade de humildade para se aproximar de Deus. E, em segundo lugar, o quanto Deus utiliza todos os meios para falar conosco. A música tem significado em si mesma. E, acredito, muitos dos músicos que se dizem cristãos não compreendem isso. A música pode nos conduzir ao nosso interior. Mostrar quem somos. Mostrar o que o mundo é. E pode mostrar o que Deus é para nós. Seja ela considerada secular ou sacra.
Porém, em qualquer tipo de arte, quando o ego, o orgulho, o desejo de aparecer e a competição são os ingredientes, todos perdem com isso. E infelizmente, essa parece ser a receita de muitos artistas “cristãos” que vemos e ouvimos por aí afora.
Letras pobres, melodias repetitivas, êxtase sem sentido e até alguns rituais estranhos no palco. E o marketing forçando as pessoas a comprarem, tocarem e até imitarem seu “astro gospel”.
Infelizmente, o ambiente cristão também é vítima – e autor – do mesmo baixo nível que existe no mundo musical contemporâneo. Ainda em sua autobiografia, Eric Clapton analisa: “A cena musical como a vejo hoje é pouco diferente de quando eu estava crescendo. Os percentuais são aproximadamente os mesmos: 95% de lixo e 5% puro”.
Mas, há esperança. E é interessante que ela venha de uma pessoa que não está diretamente ligada ao meio eclesiástico, que não é líder de algum ministério musical, tenha lançado álbuns com o selo “cristão” ou “gospel”, ou mesmo que professe publicamente uma religião.
Depois de ler vários livros sobre música no meio cristão, confesso, com um misto de tristeza (pela falta de compreensão e clareza de grande parte de nossos músicos e líderes) e também alegria (pela graça divina que revela sua grandeza e seus mistérios a quem Lhe aprouver), que a definição de música, para Clapton, é perfeita:
“A música sempre vai achar um caminho até nós, com ou sem negócios, política, religião ou qualquer outra baboseira ligada a ela. A música sobrevive a tudo e, como Deus, está sempre presente. Não precisa de ajuda, e não é obstruída. Ela sempre me encontrou e, com a bênção e permissão de Deus, sempre haverá de encontrar”
Por Fábio Davidson
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